A professora de francês Corinne Alexandre e seus dois filhos, Lorenzo, 5, e
Leonardo, 1 ano e 10 meses, em sua casa em São Paulo
Crianças que saboreiam pratos repletos de legumes, dormem no mesmo horário
todos os dias sem reclamar e não matam os pais de vergonha com ataques de birra
em público podem parecer um sonho para muitos pais.
Não na França, onde essa é a regra, e não a exceção --ao menos segundo dois
livros lançados neste ano no Brasil e que retratam as crianças francesas como
exemplo de boas maneiras e alimentação.
Para os pais que sentem que os filhos tomaram as rédeas da casa, as obras
podem parecer uma tábua de salvação, a julgar pelos títulos.
"Crianças
Francesas Não Fazem Manha" ed. Fontanar, da
jornalista americana Pamela Druckerman, e "Crianças
Francesas Comem de Tudo" editora Alaúde, da canadense
Karen Le Billon, tratam do choque cultural que essas duas mulheres sentiram ao
se mudarem para a França e criarem seus filhos no país.
Druckerman, que é mãe de três crianças e vive na França há dez anos, explica
que há uma crise global nas famílias de classe média, todas com medo de dizer
"não".
"Os pais do mundo todo estão em busca de alternativas à 'criação intensiva',
que dá tanta atenção e poder aos filhos. Os franceses não são perfeitos, mas são
um contraponto a esse modelo porque são mais conservadores e pragmáticos", disse
à Folha.
Em 2014, será lançado no Brasil o novo livro de Druckerman, "French Parents
Don't Give in" (algo como "Pais franceses não cedem", ainda sem título definido
em português).
A base das orientações é impor limites, e um dos conceitos-chave é o que a
autora apelidou de "pausa": não socorrer a criança imediatamente sempre que ela
chamar e ensiná-la a esperar a vez --não interromper os pais quando estão
conversando, por exemplo. A "pausa" ajuda os pequenos a desenvolver o
autocontrole e lidar com a frustração.
Ela ressalta que muitos desses conceitos não são novos nem tão "franceses",
mas diz que as famílias da França são boas em manter o que funciona. "Muitas das
ideias `francesas' parecem simplesmente baseadas em bom senso."
ORIGEM DA TIRANIA
Para a psicanalista Marcia Neder, autora de "Déspotas Mirins", o segredo da
criação francesa está na importância que os adultos dão para a relação amorosa.
"O casal não se torna 'papai' e 'mamãe'. A criança é importante, claro, mas
ela deve se adaptar à vida dos pais, e não o contrário. Em muitos países,
incluindo o Brasil e os EUA, nada é mais importante que o filho, e por isso ele
ganha tanto poder", afirma.
No Brasil, diz ela, a renúncia à vida amorosa está ligada ao sacrifício que
as mulheres precisam fazer para provar que são boas mães.
"A raiz da tirania dos filhos está numa idealização da maternidade de que é
preciso amar o filho acima de nós mesmos. Se ele chora, você precisa sair
correndo ou será considerada relaxada e egoísta. Não é permitido ter raiva ou
exigir muito da criança."
Segundo a filósofa Tania Zagury, professora da UFRJ e autora do livro
"Limites sem Trauma", a ideia de que os limites poderiam causar problemas
emocionais aos filhos deixou os pais inseguros. "Há cerca de 30 anos os pais
diziam "não" sem problemas. Hoje, sentem-se monstros quando fazem isso."
À MESA
As regras e os limites também aparecem à mesa. Parece mentira, mas no livro
"Crianças Francesas Comem de Tudo", a canadense Karen Le Billon conta que as
comidas preferidas de sua filha Sophie, 7, são beterraba, alho-poró e mexilhões.
Antes de ela e a família irem para a França o jantar era um "purgatório", mas
depois aprenderam o que ela chama de "regras de ouro". Uma delas é não separar
"comida de adulto" e "comida de criança". A outra é fazer refeições em família e
desfrutar desse momento.
"Para nós, o prazer de comer é primordial. Comer não é só nutrir; é um
momento de relaxar e compartilhar", diz Sophie Deram, nutricionista do
ambulatório de obesidade infantil do Hospital das Clínicas da USP que mora há 14
anos no país.
A diferença na alimentação entre Brasil e França foi o que mais chamou a
atenção da professora de francês Corinne Alexandre, 40, mãe de Lorenzo, 5, e
Leonardo, de 1 ano e dez meses, que mora em São Paulo.
"As comidas são muito doces e há muito sal. Bebida açucarada na refeição
também não faz parte da nossa cultura. Para os brasileiros, acho que pareço
rígida. Às vezes é um pouco frustrante porque tentamos fazer o melhor com as
nossas referências."
Já a consultora da indústria farmacêutica Katherine Alter, 44, que mora no
Brasil há dois anos com o marido e os dois filhos, se assustou com a quantidade
excessiva de comida.
"Fico incomodada com festas nos bufês infantis porque em três, quatro horas
são servidos muitos alimentos calóricos e refrigerante à vontade", diz ela. Na
festa de quatro anos do filho dela, na França, o momento da refeição era bem
definido. Todas as crianças dão uma pausa na atividade que estão fazendo para
sentar-se à mesa e desfrutar dos quitutes.
Todas elas, no entanto, criticam o estereótipo da criança francesa que sempre
come e se comporta bem. "É como dizer que toda mulher francesa é magra", diz
Deram.
Katherine também faz críticas à tão elogiada educação francesa. As escolas de
lá, por exemplo, podem ser muito críticas e tratar as crianças de forma ríspida,
afirma.
"Na França, espera-se que as crianças se comportem em restaurantes e quem sai
da linha é criticado. Isso pode ser positivo, mas pode ter efeitos negativos na
autoestima delas. É um alívio chegar em um restaurante no Brasil com dois
meninos pequenos e ser cumprimentada por pessoas felizes em ver crianças."
Para especialistas, livros como esses não devem ser necessariamente copiados
em casa, mas podem servir de inspiração para uma vida em família menos caótica.
"Em vez de importar as regras de outra cultura, o ideal é construir seu
próprio modelo. Os pais precisam entender que o papel deles não é deixar o filho
feliz o tempo todo, mas garantir uma formação para a vida. A partir daí, é
confiar na própria intuição", afirma Zagury.
folha.uol
[Equilíbrio e bom senso diz tudo!]